domingo, 13 de dezembro de 2009

Memórias do Bauzinho...




Saudades daquela vidinha simples em que complicado era curar dor de barriga, coisa que se fazia com chá de casca de goiaba. Era um tempo de pegar piolho, que a mãe tirava com pente fino, e bicho de pé que tinha que sair inteiro para não espalhar os ovos. Tempo de vestir roupa de anjo para a coroação e de acompanhar procissão na semana santa. Tempo de tomar banho de rio e de passar ferro de brasa na cama para espantar a friagem. Tempo de férias na roça...


Imagine certa manhã em fins de novembro. Malas prontas para a longa viagem de 110 km com destino a uma cozinha de um velho casarão numa cidade de interior. A peça principal é um grande fogão a lenha, poleiro de meninos nos dias frios; mas também há uma grande mesa retangular com umas 20 cadeiras e uma porta que dá para a despensa, um paraíso com cheiro de fruta, carne defumada e fumo de rolo.

Uma mulher, de cabelos muito pretos para uma avó, está parada diante da porta da tal cozinha. É baixinha e vivaz como uma galinha garnisé. O rosto, tingido pelo sol e marcado pela vida, se ilumina ao ver chegar uma menina. Ela está olhando para mim. Tenho seis anos; ela sessenta e tantos. Somos avó e a neta preferida, pelo menos é o que ela sempre me dizia. Um a um, todos da casa emergem e eu me perco em meio a tantos abraços, beijos, broas, queijos e planos para dois meses de alegria plena...

Os dias começavam muito cedo com o ronco do Jipe que indicava a partida do meu avô para a fazenda. Deus ajuda quem cedo madruga, e para acompanhar aquele homem severo com coração de menino, era preciso madrugar. Melhor era esperar ele voltar para o almoço, pontualmente às "10:30 da manhã", e ir para a fazenda às "11:30 da tarde"... Assim eu podia acompanhar o despertar das princesas dos meus contos de fadas – minhas jovens tias. Seis lindas Marias, dividindo o grande quarto, disputando o chuveiro para o banho, o espelho para a maquiagem. E eu extasiada, sonhando com aquele futuro esplendoroso...

Os tios, todos Josés, dormiam no andar de baixo e a guerra dos sexos era travada em volta da mesa do café. Nessa hora, chegava o Jipe, dirigido pelo Nô, trazendo os latões de leite que alimentavam a família e dezenas de pessoas que surgiam pela porta da rua, trazendo as leiteiras de alumínio. Como eu gostava daquela rotina de gente simples...

As comidas eram um capítulo a parte. Era um tempo de carne de panela, conservada na lata com banha de porco, e de limonada com bicarbonato para parecer refrigerante. Os enfeites ainda não estavam na moda e o máximo era a maçã na boca da leitoa. Tinha pinhão assado, milho verde cozido, doce de figo e cidra, e queijo Minas feito em casa todo santo dia.

Mas, todas as minhas fantasias de menina giravam mesmo era em torno da fazenda. Era onde meu anjo da guarda não tinha sossego, pois as idéias dos primos eram sempre mirabolantes. Montar cavalo bravo, construir um barco para atravessar o rio, atiçar e correr do touro Holandês... Era um tempo de galinhas sem galinheiro, que botavam ovos em ninhos colocados nos troncos das árvores, e de beber leite tirado na hora. Era onde eu me sentia tão quente e faiscante quanto a lenha que ardia no fogão, e tão livre quanto a fumaça da chaminé...

Um comentário:

  1. Oi Flávia, belo texto, você consegue colocar a gente dentro da história, talvez por ter vivido tudo isso e por representar tanta coisa para você.

    Marcelo

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