sábado, 27 de novembro de 2010

Sobre a mula que de vez em quando mora em mim...

...Uma volta atrás da outra, interminavelmente, ia a mula, colocando delicadamente suas patas estreitas como as de uma corça sobre o farfalhante leito de bagaço, seu pescoço meneando dócil como um pedaço de mangueira de borracha na coelheira, com os flancos arranhados e as orelhas pendentes e sem vida, e os olhos semicerrados dormitando malevolentemente atrás de pálidas pálpebras, aparentemente embaladas pela monotonia de seu próprio movimento...

...Não se assemelha nem à mãe e nem ao pai, e jamais terá filhos e filhas; vingativa e paciente (é fato comprovado que é capaz de labutar de bom grado e com paciência durante uma década, em troca do privilégio de escoicear uma única vez o seu dono); solitária mas sem altivez, autônoma mas sem vaidade; até sua voz é um escárnio...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.
Clarice Lispector

domingo, 21 de novembro de 2010

O que quer a mulher?

Ser o novo homem? No, thanks! Não estou interessada.

Longe de querer responder a pergunta feita por Freud no início do século passado - eu gosto de ser mulher e estou muito bem dentro do meu corpo. Gosto de ser meio fresca, sonhadora, de ter pressão baixa, chorar fácil, ficar de TPM e ser maternal com todas as pessoas e bichos que aparecem na minha frente. Gosto até de parecer mais frágil do que sou. Só que eu também gosto de discutir política, de ter opinião, de ser livre, independente. Mas isso quer dizer que eu não queira mais ser mulher?

Ter opinião, personalidade, força e coragem não quer dizer que a gente seja homem. Quer dizer que a gente é ser humano, do tipo mais ou menos bem resolvido. E que tivemos a mesma chance que eles de nos educar, estudar, aprender. Direitos iguais. Isso não era para ser o óbvio?

Ainda há bastante o que fazer antes de cantar a vitória da igualdade. Se não somos agredidas fisicamente, o que ainda acontece com uma mulher a cada 15 segundos no Brasil, as bofetadas são dadas pela família, por aquelas que se acham "mais mulheres", pela mídia. Quantas reportagens não falam da mulher que se igualou ao homem e, agora, está doente, está sozinha, está ferrada, coitada.

Falam do preço que estamos pagando por nossas conquistas:  “Conquistaram o mercado de trabalho e pagam o preço de continuarem solteiras”, “priorizaram a carreira e pagam o preço de não terem se tornado mães”. Pagar o preço, nessa fala, pressupõe que exista um desejo único que une todas as mulheres, uma “natureza feminina” que berra, inconformada com o corpo que não obedece aos seus verdadeiros instintos: casar, acasalar com amor e ter filhos.

O pior é que absorvemos essas verdades sem perceber que há nelas um determinismo do qual precisamos nos libertar. Precisamos aprender a sentir a alegria de quem escolheu, ao invés do peso de quem foi obrigado a cumprir, a leveza de quem oferece, em vez do rigor de quem se cobra.